CAVALARIA POR TERRAS DE AFRICA

Episódios passados pelos soldados de cavalaria na guerra colonial (1961-1974)

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Comando nocturno


“Seleccionado, treinado e devidamente instruído fez-se a concentração do reduzido grupo de combate. A voz do Furriel, no silêncio sobressaía monocórdica contando os elementos que iam participar na operação. Era cerca de uma da manhã. Na pequena parada, os vultos mal se percebiam de dentro do forte cacimbo que quase sempre a noite traz, nestas paragens do Norte de Angola.
Os jeeps, cujos motores já se ouviam trabalhando baixinho, estavam desde a véspera preparados para transportar o pessoal.
O Alferes faz uma última revista e comunica ao Tenente tudo estar pronto podendo-se assim iniciar a marcha. Ao longo da fita serpenteante da picada, de piso irregular, os condutores levam as suas viaturas com os faróis mínimos acesos evitando na medida do possível os buracos enormes que por vezes surgem na frente. Percorridos quase 30 quilómetros e a sinal do Comandante do Grupo a coluna pára. O guia negro indica ser ali que um estreito e invisível trilho deve começar. Os homens descem e, silenciosamente, colocam-se em fila, observando as posições já estabelecidas de antemão. Saltitando, a luz duma pilha procura na mata o caminho que se pretendia. Nada. Mais para a esquerda. Também nada. Os olhos pregados no homem da lanterna seguem cheios de interesse o seu evolucionar. Eis que surge o caminho. Entra-se na mata. O ruído dos jeeps ao longe afastando-se, dizem aos homens que só consigo próprios e com Deus podem agora contar. A progressão faz-se lentamente mas com segurança.
De vez em quando o guia pára para se orientar. Atravessa-se uma zona de alto capim e reentra-se na mata. O clarão da lanterna faz desenhar com as sombras dos arvoredos figuras fantasmagóricas. Isso porém já não impressiona dada a experiência de longos meses em acções idênticas. De súbito, mesmo aos pés do Alferes ouve-se um barulho e um resfolgar. Os nervos, mais que o cérebro agem e fazem puxar a culatra da F.N. atrás. Uma voz junto dele cicia voluntariosa: Corre! E depois: o que ias fazer? Era uma pacaça. Ainda pálido o jovem Alferes sorri. Um susto, que o ajudará a calejar nestas andanças. E continua a progressão. Três da manhã, quatro, cinco. O terreno vai-se acentuando cada vez mais em declive até ir quase a pique. Um escorregão, uma queda, uma praga bem portuguesa mas abafada. Passa-se um riacho e eis que surgem dois caminhos dispostos em forquilha. O guia negro opina por um dos lados. O Tenente e o Alferes estabelecem um breve conciliábulo e resolvem seguir o caminho contrário ao do guia. Agora é a subir, e de repente um leve cheiro a queimado fere as narinas de todos. Alto à coluna, avança-se agora mas lentamente. O cheiro é intenso. Todos deitados no chão, pois não chegou ainda a hora de ver do que se trata. No céu negro começa uma pequena claridade a denunciar a vinda do novo dia. Consulta-se o relógio: cinco e um quarto. Lentamente, erguem-se e caminham agora olhos e ouvidos atentos. Depara-se uma clareira e num ponto mais afastado saltam-lhes á vista duas cubatas. Rastejando, os soldados aproximam-se e para evitar surpresas o Alferes dispõe, por gestos, uma segurança eficaz. O Tenente, acompanhado de três homens chega-se mais perto das construções gentílicas, e ao seu ouvido surge um roncar tranquilo de gente adormecida. Armas apontadas os soldados vêm-no avançar. Eis que se ouve um tiro, uma rastolhada e gritos breves. O Tenente exclama: “Disparem, que eles estão armados e podem fugir”. Os três homens fazem fogo de rajada. Detrás corre o Alferes com dois soldados para ajudar no que for preciso. A acção porém já se desenrolou. No chão, quatro corpos jazem ensanguentados. Revistam-se as cubatas e verificam-se os canhangulos. Estes, perfeitos, estão carregados e só um conseguiu disparar. Observam-se documentos. Tratam-se de mensageiros da U.P.A...
Constata-se que um dos guerrilheiros não morreu e está ferido. Uma ordem breve: “Maqueiro, dá-lhe uma injecção”; já vários se atarefam a cortar dois troncos compridos para fazer uma maca com cintos e cobertores achados nas cubatas. Põe-se o homem em cima. Os seus olhos contemplam com ódio aqueles que, sendo seus inimigos até á momentos fazem tudo agora o que lhes é possível para o salvar. Lento e penoso inicia-se o regresso, subindo os homens com dificuldade os altos morros que se lhes deparam. O suor do esforço e da excitação corre-lhes generoso pelas frontes. Os dois Oficiais ajudam também a carregar a maca e dão incitações em frases curtas e breves. Já se aproximam da picada. O rádio trabalha e pedem-se viaturas. Ao longe podem-se ouvir já os ruídos reconfortantes dos seus motores.
Anda-se mais e eis que vêm ao encontro do grupo, os homens da coluna motorizada. Abraços, risos nervosos, conta-se como foi. E é a volta ao quartel. Nos espíritos de todos, uma onda de contentamento alastra e espelha-se nos rostos. Com êxito a missão fora cumprida. Para além de tudo, era isso que importava.”

Alferes Sílvio Bairrada - 1962

Emboscada nocturna


“Desde que o Esquadrão havia reocupado a povoação de…., apesar de todos os nossos esforços no sentido de capturar ou aniquilar os diversos núcleos de inimigos em actuação naquela zona, pouco se havia conseguido. O Pelotão que aqui esteve antes do meu, capturou de uma vez duas mulheres que, depois de habilmente interrogadas por nativos fiéis, acabaram por indicar os locais onde o inimigo estava concentrado; uma delas foi então encarregada de lhes levar um aviso escrito na língua deles (uma “mucanda”, no dialecto da terra), no qual se lhes dava um prazo de três dias para se entregarem, prometendo-lhes mundos e fundos…
E, é claro, tudo como dantes, quartel-general, não em Abrantes, mas sim no tal escondido povoado.
Lá fui, em reconhecimento prévio.
Um pequeno vale, com três manchas de arvoredo em triângulo, na margem direita do rio; um pântano separava esse local do nosso itinerário normalmente utilizado e que passava a uns seiscentos metros das tais matas.
Evidentemente que o inimigo tinha a sua vigilância muito bem montada, e nunca seria possível surpreendê-lo durante o dia; só talvez durante a noite, e mesmo assim, a travessia do pântano não me parecia viável, não só pela natureza lamacenta do fundo, como pela altura das águas… e, sobretudo, pelas centenas de horríveis crocodilos que por lá iam fazendo vida. Por outro lado, observámos que, quase todas as manhãs, uns grupos de homens e mulheres nativos saíam das suas matas e atravessavam um braço de pântano, com o auxilio de pranchas de madeira que depois retiravam, para irem recolher as suas culturas nas lavras da margem esquerda do rio, tudo isso debaixo da protecção de uma forte escolta armada de canhangulos.
O local distava nada menos do que cinquenta e tal quilómetros do nosso aquartelamento.
Estudei os detalhes de uma emboscada a armar aos grupos já referidos, a fim de efectuar prisioneiros e, por eles, conseguir que os rebeldes se nos rendessem, passando a viver em paz e harmonia connosco.
Para mascarar a operação, anunciei que, no dia D, às tantas, íamos a uma sanzala próxima, fazer o seu reconhecimento, e buscar lenha para as nossas cozinhas, de que estávamos de facto necessitados.
A coluna saiu com uma viatura Land-Rover à frente, na qual ia eu com dois soldados (não esquecer que se tratava de um serviço de faxinagem), os quais voltariam para o quartel; a seguir iam os três Unimogs, de capotas fechadas – lá dentro, a Tropa apetrechada, armamento, munições; atrás, de modo a ver-se de fora, pessoal em fato de trabalho, que regressaria também ao quartel.
Chegados que fomos a tal sanzala, os Unimogs despejaram as suas cargas de guerreiros para o interior de um edifício abandonado, isto enquanto os faxinas cortavam paus e juntavam lenha, com o maior barulho e o mais espectacularmente possível, carregando os Unimogs, cujas capotas passaram a deixar ver o que ia lá dentro.
Por fim, os Unimogs retiraram, tão aparatosamente como tinham chegado; e nós passámos todo o santo dia e noite, sem tugir nem mugir, escondidos no edifício, evidentemente que com vigilância montada.
Três horas e meia da madrugada; a pé, e a caminho…
Antes do nascer do sol, a emboscada estava montada; só nos restava aguardar…
Seriam cinco e meia, apareceu finalmente um grupinho de cinco nativos, de canhangulo às costas, falando despreocupadamente; pararam a meia dúzia de passos das bocas das nossas armas. Agora aí vem o grosso da escolta: quarenta a cinquenta homens, uns também com canhangulos, outros de catana; finalmente, um numeroso grupo de povo incluindo bastantes homens e mulheres e crianças, destas últimas poucas.
Em vez de se dirigirem abertamente para o sítio das lavras, pararam todos muito perto de nós, começaram a discutir e a andar de um lado par ao outro; um cipai que nos acompanhava ouvia perfeitamente o que diziam e disse-me que estavam a decidir se deviam ir às lavras ou voltar às suas matas, sem que se percebesse a razão da indecisão. Por fim, contra a nossa expectativa, voltaram para trás…
Dei então de imediata ordem a uma das Secções para, sem barulho, tentar o envolvimento e cortar-lhes a única retirada… Mas o movimento foi pressentido… e “salve-se quem puder”! Foi uma desordenada correria até ao pântano.
Dos abatidos, alguns foram identificados pelo cipai como inimigos de grande actividade, no início dos acontecimentos; dos perigosos.
Numerosos os prisioneiros feitos; mesmo alguns, que se tinham metido no pântano foram apanhados por alguns dos nossos soldados que, sem olhar a jacarés, rapidamente tiraram as roupas, e de capacete, cartucheiras e armas, se meteram à água; exímios nadadores…
Ora bem: agora é preciso dizer uma coisa…
Quando fizemos a nossa instalação, ainda de noite, mandei um dos Sargentos, acompanhado por um cipai, fazer um curto reconhecimento ao caminho que os inimigos deviam tomar, para ver se haveria qualquer alteração – pois as ligeiras pegadas que deixaram, não passaram despercebidas aos astutos inimigos. Era precisamente isso que eles estavam discutindo; e se tivessem seguido os conselhos de alguns deles nunca teriam caído na boca do lobo…”

Alferes Paixão, 1961

Uma acção algures no Ultramar

O interrogatório feito a alguns presos, deu origem à notícia de que em determinada sanzala, estaria um indígena, talvez acompanhado de seus apaniguados, chave provável de um levantamento numa zona já considerada suspeita havia uma semana. Esta notícia foi obtida pelas 12h00 de um dia de Setembro. Pelas 14h00 outro preso acaba também por falar, e chega-se à conclusão que na realidade esse levantamento parecia existir, e mais, que poderia eclodir dentro de 48 horas.
O comandante da Unidade encarrega-se de sair imediatamente com o meu pelotão reforçado com uma secção, para aprisionar o tal indígena, chefe do levantamento. Não há tempo a perder, essa zona fica a 150 km de estrada má.
A primeira dificuldade surge: o desconhecimento quase total da zona onde iria operar. A maneira de o suprir, é arranjar um guia que na emergência teve que ser um dos indígenas relacionados com o levantamento. Consequência imediata, uma certeza muito relativa de conseguir chegar ao objectivo, e muitas probabilidades de "surpresas" pelo caminho.
Segunda dificuldade, a de andar no mato, de noite, e o barulho natural e impossível de abafar, de 30 homens desconhecendo o terreno e caminhando às cegas.
Terceira dificuldade, o tamanho da sanzala. Mandam os Guias e Folhas editados na metrópole sobre rusgas, que se montem anéis cercando a povoação ou sanzala a ser rusgada e haver equipas que depois entrarão propriamente no aglomerado e farão a dita rusga. Quantos homens seriam precisos para assim proceder? Até desconhecia o tamanho da sanzala.
Eram 20h00 quando cheguei ao Posto Administrativo dessa região, esclareci o respectivo chefe do que se passava, o qual se incorporou voluntariamente na coluna.
Eram 21h00 quando cheguei a um rio largo e caudaloso que dizia o preso ficar a uns 20 a 25 km do objectivo. Aqui apeámo-nos das viaturas ficando uma secção actuando como equipa de recolha. Atravessámos o citado rio e iniciámos uma penosa marcha a pé, e digo penosa por o terreno ser arenoso, e todo o pessoal ir carregado por não se saber o que apareceria e quanto tempo demoraria a acção.
Antecediam a coluna dois homens, distanciados uns vinte metros. À retaguarda atrasados uns 5 a 10 metros seguiam também outros dois homens. A marcha realizava-se em fila indiana distanciados os homens uns dos outros de 2 metros. Ao cabo de quatro horas de marcha consecutiva por mato e areia, sempre sob a orientação do "fidelíssimo" guia, este informou-me estarmos a 200 metros do objectivo. Nesse lugar mandei parar e descansar a coluna. Chamando os Sargentos, deixando com os homens o oficial médico que voluntariamente quis tomar parte nesta acção, desloquei-me em reconhecimento até à sanzala. Verifiquei que não era guardada, não havia vestígios de vida (não existiam cães nem animais domésticos) e que apesar de não ser demasiadamente grande não se poderia efectuar um cerco, que garantisse não haverem fugas, o que além da importância da perda dos presumíveis fugitivos. Nesta altura é ainda mais de capital importância, o sigilo que tem que rodear a acção como factor psicológico no indígena que se considera no mato e especialmente de noite impune e absolutamente fora de qualquer acção de tropa regular. Resolvi dividir a sanzala em três partes (pelas três secções) distribuídas aos respectivos Sargentos, e explicando-lhes que a cada cubata eles destinariam dois homens, um à porta e outro na retaguarda. A um sinal previamente combinado o Pelotão movimentou-se à vista da sanzala. Mais pareciam fantasmas do que gente, sendo inconcebível a escassez de barulho de 30 homens deslocando-se o mais rapidamente possível. Os Sargentos com as secções entraram na sanzala e dispuseram os seus homens como já lhes tinha sido dito. Durante esta acção o silêncio reinante muito imperceptível mente foi alterado. Foram montados também 4 postos de vigilância em árvores, com duas missões diferenciadas: a protecção do pelotão, detectando qualquer movimento exterior à sanzala e impedir a fuga de qualquer indígena. Consegui obter do preso que me orientava, a indicação da provável cubata onde estaria o objectivo daquela missão. Postei-me no meio do aglomerado de cubatas e dei o sinal esperado, previamente combinado: o levantar bem alto a pistola metralhadora. O barulho e confusão imediatamente seguidos, manifestou-se durante uns escassos segundos. Cada homem ao sinal acendeu a sua lanterna eléctrica, entrou na palhota respectiva e trouxe para o centro da sanzala o ou os habitantes masculinos visando sempre o menor barulho que estes pudessem fazer. Entretanto o outro soldado postado na retaguarda da habitação enquanto o outro entrou, verificou ninguém ter fugido por brechas ou buracos nas paredes da palhota, e assim que o primeiro soldado saiu levando o indígena dono da cubata, ele imediatamente garantiu que mulheres e filhos fiquem retidos na já mencionada habitação. Verificou-se que tal como na Metrópole as mulheres e crianças têm a tendência para iniciar um "berreiro" não só de choros como de insultos; contudo constatou-se, que bastava agir com autoridade para que o silêncio não fosse alterado. O homem que deu origem a esta rusga não foi preciso ser apontado entre os indígenas postados no centro de cócoras tremendo tanto de frio como de medo. Altivo e senhor de si quedou-se num mutismo absoluto apenas quebrado para afirmar ser ele o indivíduo correspondente ao nome que chamei. O objectivo principal estava alcançado, sem ter havido da parte deles o mínimo gesto de defesa devido á rapidez de execução e surpresa totalmente conseguida. Faltava apurar quais dos outros indígenas seriam os apaniguados. Assim que os homens estiveram todos reunidos no centro da sanzala, montaram-se duas sentinelas para os guardar e os soldados voltaram às cubatas que lhes tinham sido atribuídas, e iniciaram uma busca minuciosa empregando todos o seu saber sobre "arte de esconder" tão desenvolvida nos indígenas. Entretanto as sentinelas às mulheres e crianças fazem-nas sair das habitações, dirigindo-as para o centro da sanzala sempre em silêncio, sentando-as no chão separadas dos homens e de costas voltadas para eles. As crianças foram deixadas ao pé das mães, excepto aquelas que se julgavam terem já aproximadamente os dez anos ou mais que formaram também no chão, em grupo separado. Começaram a juntar-se num local já designado por mim, armas e artigos apreendidos nas cubatas. Foram apontadas as lanternas para as caras dos presos e foi chamado o indígena que me guiou, mantido sempre em silêncio e guardado a um canto da sanzala por um soldado. Este indicou um por um aqueles que como ele eram cabeças ou simples executantes no motim a eclodir. A rusga tinha começado às 2 horas da manhã e estava terminada às 4 horas. Iniciou-se a marcha de regresso, com os presos, armas e papéis apreendidos conservando o mesmo silêncio. Eram 7 horas quando chegámos ao local onde estacionavam as viaturas. haviam-se feito 40 quilómetros de mato e areia, aprisionando o chefe e cabecilhas de um levantamento, estava abortada talvez mais uma tentativa para alterar a paz e sossego que até aí essa região desfrutava.

Alf. Cavª João António Garoupa - 1961


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